Primeiro amor
Gostava muito dele
mas nunca lhe disse isso
porque a minha criada tinha-me avisado
se gostar de um rapaz
nunca lhe diga que gosta dele
se diz
ele faz pouco de si para sempre
os rapazes são maus
eu não era bela
nem sabia quem tinha pintado Os pestíferos de Jaffa
resolvi assim escrever-lhe cartas anónimas
anónimas
escrevia o rascunho num caderno pautado
não sei hoje o que escrevia
mas sei que nunca escrevi
gosto muito de ti
e depois pedia a uma rapariga muito bonita
que passasse as cartas a limpo
eu acreditava que quem tinha uns cabelos
assim loiros e a pele assim fina
devia ter uma letra muito melhor do que a minha
agora que conto
agora que conto isto
vejo que deixo muitas coisas de fora
por exemplo que o meu primeiro amor
não foi este mas o Paulo
o irmão da rapariga bonita
adília lopes
resumo
a poesia em 2009
assírio & Alvim, 2010.
Metereológica
para o José Bernardino
Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter
Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
A vida
é livro
e o livro
não é livre
Choro
chove
mas isto é
Verlaine
Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico
A solidão
de Adão
antes da criação
de Eva
devia ser
terrível
mas a minha
é bem pior
os homens
que escreveram
o Génesis
não pensaram
que Adão
em vez de saudar
Eva
com um grito de júbilo
a mandasse embora
com sete pedras na mão
mas eu acho
que foi
o que me aconteceu
temendo isso
Deus
não me deu
o papel de Eva
nem o de Maria
porque também
S. José
me tinha corrido
a pontapé.
A BELA ACORDADA
Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia era bonita, as pessoas diziam-lhe:
- Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa. Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
- Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça. A mulher pediu a Deus:
- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para
sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar
com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais
gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando
era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais
não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço,
estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a
mastigar.
Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que
pescou o peixe.
Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe,
descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a
mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o
peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe
foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe
morreu. As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram
chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei
apaixonou-se pela mulher.
- Será uma sereia ? – perguntaram em coro as criadas ao
rei.- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito
tortas, uma mais curta do que a outra – respondeu o rei às
criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar.
Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à
mulher quando as criadas se foram embora:- Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com
uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e
comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:- Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona. E casaram-se logo a seguir no
tapete de Arraiolos da casa de jantar.
In Adília Lopes – OBRA – A Bela Acordada, pag. 300, Ed. Mariposa Azul, Lisboa